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Almas Quebradas: Capítulo I - A Saciedade de um desejo - Parte I


― Vocês sabem que não podem fazer isso para sempre, não é? ― exclamei.


Apertei o lápis que segurava com força. Já haviam se passado duas semanas e nem Raquel e Melanie haviam voltado a falar comigo normalmente. Aquilo estava me matando por dentro.


― Não sei do que você está falando, Chris. ― respondeu Melanie. E continuou a copiar a tarefa do quadro sem desviar sua atenção para Christian.


― A Mel tem razão, Christian. Você tem tudo o que quer, e nunca precisou pedir por nada, porque você acha que tem algo diferente?Estreitei os olhos. Eu já havia me desculpado pelo o que havia feito, contudo não admitiria que ainda conversava secretamente com o Bellator.


― Eu já me desculpei, não foi? O que vocês querem? Que eu me humilhe e espere que me façam de tapete e dancem sapateado na minha dignidade?Levantei da minha mesa, e coloquei as mãos na cintura. O que chamou muita atenção do restante dos alunos que tentavam copiar o dever de casa que o professor havia passado. Sentei envergonhado, e falei mais baixo.


― Não tenho culpa que ele tenha me beijado. ― segurei a mão de Melanie que copiava freneticamente, e encarei corajosamente seus olhos verdes acusadores. ― Eu juro que não sabia que era isso que ele queria de mim. Eu achei que estivesse se aproximando por gostar de você, M-Mel...


― Pensou isso quando ele enfiava a língua dele na sua garganta? ― ela franziu a testa em uma demonstração do veneno, que eu tinha certeza, que teria muito mais guardado.


Tirou com raiva sua mão do meu toque e abaixou a cabeça sobre o caderno da Hello Kitty de Raquel. As duas viviam copiando as tarefas com os cadernos trocados. Sempre achei uma mania bem estranha, mesmo que morresse de vontade de fazer o mesmo.


― Você sabia, Chris. Eu sempre gostei dele. Mesmo quando na 4ªsérie ele fosse magro demais, e parecia sempre tropeçar nos próprios pés e ninguém parecia notar a presença dele. Mas eu notava! Sempre o observei e fui amiga dele. E agora você mal chega e está tirando a única coisa que me odiaria que tirassem de mim!


Ela olhou para mim suplicante. As lágrimas escorrendo livremente pelo seu rosto. Comprimiu os lábios com força e agarrou seu material contra o peito saído em disparada pela porta.


O professor apenas observou sem entender.


― Ela está com muita enxaqueca, professor. Vou ver se ela está bem. ― Raquel pegou seus pertences, esbarrando propositalmente no meu ombro.


― Você deveria se envergonhar pelo o que fez. Porque ela era a única dessa escola que realmente gostava do filho desajustado da assassina de Bormell ― sussurrou.


Engoli o choro como se tivesse acabado de tomar vodca pura com a garganta inflamada. Nunca gostei do apelido que havia me dado assim que havia chegado naquele lugar no início do ano. Infelizmente, havia pegado como chiclete na sola do sapato.


Eu não tinha culpa se a minha mãe biológica havia queimado o padre da cidade em plena Praça Pública e se trancando com dezenas de crianças órfãs na igreja e tacando fogo em tudo. Até hoje eu não sei o que causou isso. Minha mãe não era a criatura mais doce, mas era a mais generosa e idealista que já havia conhecido. Aquelas morte não faziam nenhum sentido para mim. Pelo menos, dizem que ao se sentir culpada, minha mãe havia se trancado na igreja e queimou viva em um ato de purificação e redenção pelos seus pecados. Ela achou que depois do padre apenas ela morreria, ironicamente, 73 crianças inocentes a acompanharam naquele inferno.


Saí da cidade no ano seguinte após três tentativas de lixamento.Agora morávamos na casa da minha avó, nos arredores da cidade. A casa era antiga e às vezes parecia que ainda veria as pessoas dos quadros ganhando vida e dançando no salão de festa.


As aulas seguiram normalmente naquele dia. E percebi que durante todos aqueles seis meses naquele lugar não havia criado nenhuma amizade. Ninguém falou comigo, e nem vi a necessidade para isso. Não falava com ninguém dali. Aquela realidade de "fortes amizades" como a Raquel e a Melanie, era uma reconfortante ilusão de que eu era aceito. E tudo parecia confirmar que Raquel estava certa. Quem seria amigo do filho da assassina de Bormell?


― Chris? Como foi o seu dia? ― Menêsis Bellator chegou furtivamente por trás me abraçando.


"Ah sim, ainda tinha o Bellator. Alguém que realmente gostava de mim.", pensei, sorridente.


― Normal. Não tive as duas últimas aulas. Estava te esperando.


― Fico feliz que meu namorado seja tão atencioso quanto minha futura esposa.Ergui os olhos em sua direção. Estava sentado na mesa de pedra, sua silhueta banhada pelo Sol das três. Seu cabelo escuro estava grudado na nuca, molhado por causa da aula de Educação física no seu último horário.


― Esposa? ― perguntei, incrédulo.


― Claro, que é você, meu amor. ― inclinou-se na minha direção.


Seus lábios roçaram levemente nos meus, antes que o afastasse ofegante, pois minhas batidas e meu fôlego sempre pareciam prestes a me matarem com apenas com sua aproximação. Meus dedos formigaram ao sentir seu peitoral molhado por debaixo da blusa social do uniforme. Senti minha mão vacilar, descendo trêmula pelo seu abdômen trabalhado.


E vi que Bellator me observava entretido com meu (mal calculado) atrevimento. Incentivando ao se aproximar cada vez mais. Deixando clara a altura em que eu estava no banquinho abaixo de ele.Virei o rosto envergonhado.


― Não sou seu namorado.


― Pensei que fôssemos, depois do que aconteceu naquele dia. Você não reclamou na outras duas vezes também.


― Momentos de fraqueza.


― Como esse? ― Meier, era como o chamava, segurou o meu rosto, alternando cada sílaba em cada orelha, sussurrando sedutoramente até que enfim eu finalmente parasse de resistir.


A muralha que havia criado na minha cabeça que impedisse qualquer sentimento ou sensação por causa de ele, simplesmente degradou-se em ruínas. Poderia fazer muitas coisas sendo racional, mas poderia fazer muito mais seguindo meu coração. E era bem mais prazeroso errar em função dos meus desejos do que preservar minha lealdade à quem nunca a mereceu.


Estava irremediavelmente magoado, e não liguei realmente para as consequências que viriam.


Beijei-o como se tudo se resumisse àquilo. Minhas mãos passearam por entre seus cabelos, e o senti se ajeitar na mesa com as pernas pendendo a minha volta. Apoiei-me com o joelho e colei meu corpo ao seu, vibrando pela sua pele tão notavelmente quente por debaixo da roupa.


As mãos de Meir me seguraram possessivamente. Então ele se afastou gentilmente, nos separando com um selinho e um sorriso travesso no lábios.


Minha respiração já estava ofegante e meu peito parecia inflar de excitação.


― Isso não nos torna namorados ― brinquei.


― Então o que isso nos torna? Amantes?


O aperto dos seus braços em volta da minha cintura se intensificou por um instante. Amantes não parecia algo muito além da verdade. Era o que eu era, não é? Não poderia tê-lo por completo para mim, e mesmo que fôssemos apaixonados um pelo outro não duraria muito tempo. Não poderia prolongar essa situação com Melanie.


― É o mais perto do que seremos.Ele riu, constrangido.


― Desde que não seja a última coisa na qual seremos um para o outro.


― Poderíamos ser muitas coisas. Não quer dizer que nos amaríamos para sempre.Meir descansou sua cabeça no meu ombro, causando arrepios por todo o meu corpo. O que me esforcei para me controlar.


― Se você quiser, pode ir comigo nesse sábado.Vai haver uma festa na praia, e seria muito bom se você estivesse lá comigo, sabe?


― Como amante?


― Seria um começo.


Conversamos por mais um tempo sobre o dia de Meir. Evitei com maestria qualquer coisa relacionado ao meu dia como fiz na últimas semanas. Ele não sabia que Melanie gostava dele. E obviamente não era para conversarem sobre as séries que ele gostava ou as pessoas que paquerava como ele achava.


Eles não eram próximos, mas tinham um grau de intimidade que me incomodava às vezes. Provavelmente ciúmes, seja dele ou dela, sempre me agarrei fortemente em quem me apegava. Poderia ter muitas coisas, mas amigos de verdade eram quase uma espécie em extinção para mim.


Ele me acompanhou até metade do caminho. Já havíamos conversado sobre isso, e era bem mais conveniente para nós dois que minha avó não soubesse de nada. Poderíamos dizer que eu a achava extremamente religiosa e rigorosa com algumas regras, como não namorar ninguém até completar 18 anos e de preferência que fosse bem depois disso.


O portão de dez metros abriu com um rangido. As gárgulas espreitando como sempre fizeram nas colunas que se encontravam nas extremidades do portão negro. Andei pelo jardim de tulipas e pela fonte engraçada do cupido e cheguei em casa. Minha avó estava sentada na varanda molhando as plantas, seu cabelo grisalho preso em um coque apertado o alto da cabeça. Seus olhos laranjas me encararam por alguns segundos, me examinando.


― Bem vindo de volta, Chris. Como foram as aulas?


― Foram boas, vó. ― beijei o rosto da minha avó e entrei.


― Espere. Ainda não fizeram as pazes?Parei na entrada com a mochila pendendo de um lado.


― Como assim, vó? ― perguntei confuso.


― Suas amigas. Elas nunca mais vieram aqui. O que aconteceu?


― Era só isso?― falei aliviado.


― E você tem chegado mais cabisbaixo que o normal. Imaginei que fosse algo do tipo. É difícil sustentar qualquer relacionamento nessa cidade depois do que sua mãe fez.


― Estamos bem. Estivemos ocupados nos últimos tempos.


― Se é o que diz, então tudo bem. Suba, tome um banho e venha jantar, entendeu?


― Claro.


Subi as longas escadas em espiral e passei pelo corredor mais longo que era o dos quartos. Haviam poucos quadros naquela área, a maioria de paisagens e abstratos. Meu quarto era um dos últimos daquele corredor, do lado do da minha irmã mais velha que estava na faculdade e não voltaria até o natal.Joguei minhas coisas no sofá que ficava no canto. Deitei na cama exausto. Lembrei dos momentos que tive com Meir e um sorriso brotou radiante no lugar da expressão cansada. Observei as constelações que havia desenhado no teto e imaginei se um dia seria tão feliz que não me sentisse triste toda vez que as via.


A janta foi extremamente monótona como sempre. Minha avó nos fez, como toda noite, orarmos agradecendo por nossa refeição. E minha tia bebeu tanto vinho que vomitou na longa mesa de jantar e logo em seguida desmaiou como um defunto.


― Oh, Grace, eu disse para você não exagerar. Principalmente se não sabe beber, minha querida.



Minha avó limpou seu rosto e me falou para que me aproximasse.


― Os empregados já foram para sua casas. Somos só eu e você, e sua tia desacordada. Minhas costas não aguentam carregá-la. Você consegue levá-la até o seu quarto?


Franzi o cenho em dúvida. Ainda não sabia onde minha tia dormia naquela casa. E nunca perguntei onde era.


― Mas não sei onde é o quarto dela.


― Claro, claro. Ela está dormindo no meu antigo quarto, o que fora da sua mãe antes de você nascer. Ele fica no outro andar atrás das trepadeiras.


― Trepadeiras?


― Elas gostam daquele corredor sombrio. Leve-a, não há erro, siga o corredor e vire a direita até ver uns galhos e entre por ali. Vou limpar essa bagunça.


― Tudo bem.


Segurei minha tia apoiando seu pescoço no meu ombro enquanto ajustava meus braços em suas pernas para que não pesasse tanto. Caminhei devagar, passando pelas escadas que pareciam bem mais longas com minha tia nos braços, que cujo vestido vermelho insistia em ficar prendendo em meu bracelete.


― Pelo menos, esses dois últimos anos sendo forçado a jogar futebol tenham valido a pena.


― Você continua tão frágil quanto uma prenha.― resmungou minha tia ainda bêbada e semi-acordada.


― Obrigada pelo elogio, tia. Mesmo vindo da mulher adulta que vomitou na mesa de jantar e no tapete favorito da vovó.


― Guf. O Puff?


― Ele tem nome?


― Desde que sua... Guf. ...mãe começou a chamá-lo... Guf ...assim quando crianças. ― disse minha tia aos soluços e segurando o vômito que eu sabia que viria.


― Tia Grace...


Minha blusa preta com desenhos de espinhos desenhados mais escuros que o tecido, foi completamente banhada do que um dia foram camarões grelhados e uma refeição gostosa.


Franzi o nariz o máximo que pôde para não sentir aquele cheiro impregnado na minha roupa.


O corredor que minha avó mencionara era bem mais do que sombrio. Era aterrorizante. O som dos meus passos abafados pelos corpetes no chão, parecia que a escuridão do lugar engolia tudo que ali se mexia. Quanto mais fui aprofundando, mais trepadeiras eu encontrei, e achei impressionante que mesmo sem saber de onde vinham elas não se atreviam a passar pelo corredor.


Achei uma porta de madeira escondida e entrei vagarosamente, encontrando um quarto espaçoso e cheio de estantes preenchidas por livros. A cama ficava em um lugar mais alto. Uma escada afofada levava rapidamente em direção a cama.


Subi o mais rápido que pude. Meus joelhos e minhas panturrilhas estavam doloridas e meus braços, nem os sentia mais. Coloquei minha tia na cama que simplesmente tirou o vestido, ficando apenas com as roupas de baixo. A enrolei com o cobertor verde que forrava a cama, constrangido.


Desci as escadas devagar. E maravilhado pela quantidade de livros que haviam ali. Uma poltrona ficava no centro do cômodo junto com uma mesinha e uma chaleira. Nas estantes vislumbrei um livro roxo empoeirado, e o limpei com a barra da blusa e li o seu título: " As Rupturas da Morte ".


― Sinistro...


Sentei na poltrona e folheei algumas páginas, e inconsciente peguei a xícara com chá de alguma erva desconhecida e tomei. E saboreei seu doce aroma quente.Quente?Larguei a xícara assustado. E foi então que percebi que até mesmo do bule uma fumaça quente lhe envolvia. Recuei alguns passos na direção de uma janela tampada por grossas cortinas. E ouvi um toc toc incessante nas minhas costas.


Segurei o grito para que minha tia não acordasse. Afastei a cortina ansioso para saber quem era. No máximo algum lunático que havia escalado o casarão. Viviam fazendo isso.


No lugar disso, o meu reflexo cumprimentou-me com avidez.Era um espelho.Toquei sua superfície admirado. Era muito antigo e delicado. Havia tantas rachaduras que me perguntei como ainda estava inteiro.


― Christian? É você, mesmo? Christian? ― uma voz muito diferente da minha saiu do meu reflexo. Procurei com os olhos qualquer outro lugar que pudesse estar chamando meu nome.


E sem dúvidas o meu reflexo me chamava.


Ele não repetia minhas ações e muito menos tinha os meus olhos. Os dele era de um negro tão profundo e cruel quanto o de um corvo, acompanhado de um verde penetrante que eram suas pupilas que se alastravam como as rachaduras do espelhos até as bordas de sua íris.


― O que você é? ― questionei ciente que ou estava louco ou muito bêbado para estar vendo coisas.


― Sou você.


― Não, não é. Você tem minha imagem, mas não passa disso. Nem seus olhos são parecidos com os meus e nem a sua voz. Como sabe meu nome?― Estive a sua espera, mestre. ― curvou-se em uma reverência, sem me responder.


― Faz muito tempo que não tenho um mestre. Essa daí nunca foi uma escolhida, então nunca pôde me usar. Mas você é o segundo filho da Sra. Claire, minha antiga dona, então por descendência, agora sou seu.


― Como conhece a minha mãe? E como assim "meu"?


― Logo,logo você saberá. Venha até mim de novo. Dessa vez quando ela não estiver aqui, não quero que ninguém nos atrapalhe.


Escutei quieto, hipnotizado pelo grave que sua voz tinha, que parecia me envolver e me atrair até o espelho.Segurei o repentino impulso e afastei alguns passos.


O reflexo começou a ficar tão imóvel quanto eu estava e apenas seus olhos ficaram me encarando antes de continuar.


― A próxima conversa será paga, mestre Christian. Chame o meu nome que irei até onde estiver. Me chame de John.


Assim como suas palavras pareceram perder a força como uma fumaça tragada e levada por uma brisa, suas palavras desapareceram como se nunca tivessem sido ditas.


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